terça-feira, 16 de março de 2010

Briosa



A infância traz marcas que nos perseguem, como fantasmas.
No meu caso lembro-me distintamente da segunda pergunta que os meus novos amigos me faziam (a primeira era "como te chamas")

-És do Benfica ou do Sporting ?, nesses tempos distantes em que a capital portuguesa dominava olimpicamente o futebol e a expressão "sociedade anónima" lembrava apenas escritórios mal iluminados nas ruas da Baixa..

A pergunta era aquela, então,"Benfica ou Sporting", as respostas possiveis contidas no enunciado.

E a minha era invariavelmente a mesma, sincera e natural como respirar

-Sou da Académica, algo que me parecia extremamente normal e até motivo de particular orgulho. Mas não para os meus infantis amigos

-De quem?, perguntavam, aturdidos pela bizarria, pela excentricidade.

Não havia vida futebolística além dos dois grandes rivais lisboetas, com excepção possível de um Belenenses, clube de vetustos avós, ou - Deus nos livrasse! - do Futebol Clube do Porto.

Agora, da Académica, aos seis anos, ninguém era,muito menos alguém nado e criado em Lisboa.

Excepto eu. E ainda o sou, e sempre o serei, até porque acredito que a Académica de Coimbra é o clube de futebol mais romântico do mundo.

Um clube de estetas, de dandies do futebol, que aceitam as derrotas como parte da vida e não existem em função exclusiva das vitórias.

O tempo, felizmente, tem-me vindo a dar razão, e não disfarço algum contentamento com isso.

Quero dizer, a parte das derrotas chateia-me de morte, como a todos os apaixonados. A diferença é que quem é da Académica sabe viver com isso, porque tem a certeza de que tanto ganhar como perder faz parte do património do clube. .

Porém, no capítulo das solenes embirrações que me assolam sobre esta matéria, uma há que me põe sociopata.

É quando alguém replica, após saber da minha filiação clubística, que a Académica é um clube "simpático". Simpático?! Simpático é o senhor que deixa passar a velhinha para a frente da fila - a Briosa é um clube brilhante, elitista e inteligente, e que conta, como todo o Universo deveria saber, com os melhores adeptos do planeta.

A magia da Briosa é única e entranha-se. A mim, apanhou-me quando vi com o meu pai (academista) uma final da Taça de Portugal - por acaso, uma que ficou na história, a de 1969.

Jogámos e perdemos com o Benfica de Eusébio, por dois a um. Tínhamos na altura uma super equipa - em que pontificava,curiosamente, Artur Jorge -, mas o que mais me impressionou (com 5 anos) foi o ambiente que se vivia no estádio.

Mais tarde vim a saber que se tratava da célebre greve académica, e que a Briosa era vista como uma equipa "anti-regime".

Mas a entrada dos jogadores, vestidos com as capas negras - sim, eles estudavam mesmo! - , o maravilhoso toque de bola e passe curto (marca registada de Coimbra) e a festa que se fez antes, durante e depois no Estádio Nacional marcou-me para sempre.

Não se pode achar "simpatico" um clube assim. Tem que se amá-lo, com o rigoroso exagero da paixão.

E vingá-lo, como o agora o faço com décadas de atraso, perante os meus infantis amigos que não sabiam quem era a Académica de Coimbra.

(publicado em 2005, na revista Epicur)




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